Ceci





(foto e texto: Marcelo Magalhães)


Prefácio: Ano passado comecei o ano com um texto para minha mãe. Coincidentemente - ou não - eis que o primeiro texto é também para ela. Explico: no Natal deste ano resolvemos não trocar presentes físicos. A proposta era que cada um escrevesse um texto/ conto/ poema para o outro. Mal sabíamos o quão físico seriam esses presentes. Emoção pura.

Abaixo segue o meu presente para aquela que me deu a vida de presente e insiste em me ter como presente.

CECI


Lembro bem. Melhor do que se fosse ontem. A fantasia sobre as minhas memórias me permite viver aqueles momentos, com mais liberdade do que se fora um relato.

Ela cumpria 40 anos. Eu tinha menos. Bem menos.
13.
Justo o dia do aniversário dela. Seu número da sorte. Sorte a nossa. Ter uma mãe tão diferente das outras.


13/7/1994

O dia ainda tinha preguiça quando deixamos os lençóis - irmão, pai e eu. Fui acordado com um beijo carinhoso à testa e nossos olhares cúmplices dispensavam quaisquer palavras. Recolhi a perna esquerda, que sempre dormia na cama de meu irmão, e com dois breves toques, às suas costas, o convidei para aquela nossa missão.

Nossos movimentos - a partir daí - eram quase os de uma peça de teatro. Pelo desalinhar dos nossos cabelos, as marcas dos travesseiros tatuadas à pele e, o curto comprimento de nossos pijamas, seria uma apresentação tipo "off Broadway".

Entramos nos primeiros shorts e camisas dentre as pilhas de opções que tínhamos em nossos armários. Lembro que entre vestir um braço e outro, fitava nos olhos de meu irmão o mesmo brilho que nos meus. Sabíamos do risco daquela decisão. De certa forma acho que já sabíamos exatamente o que aconteceria, e era exatamente isso que impulsionava nossos corpos juvenis em direção aquele confronto inerente.

Nosso quarto, de meu irmão e eu, era o último do pequeno corredor. Teríamos que passar em frente ao que abrigava o corpo ainda sonolento de nossa fonte de luz. Era preciso cuidado para não despertar os sentidos que se aguçam ao extremo quando uma mãe sente a presença de suas crias. Tarefa com direito à trilha Missão Impossível e que vencemos com algumas gotas de suor e risos contidos. No final do corredor meu pai, já a postos, assistia à cena com largo sorriso. A barba sempre bem aparada dividia espaço no rosto com seus óculos Ray Ban e a inconfundível chuca de cabelo que lhe protegia a careca reluzente.

Pela janela escancarada da sala de estar víamos os primeiros brilhos de sol refletirem sobre as águas poluídas da Lagoa. Aquele seria o maior concorrente ao nosso presente para aquela amante do Cristo e da praia carioca.

Fechamos a porta branca com cuidado e encarei por um momento os três números pregados à ela; 802. Deixamos o pequeno hall - os elevadores sociais não permitiam acesso às garagens - e tocamos o botão dos dois elevadores que ficavam no longo e estreito corredor que, por vezes, também nos servia de campo de futebol.

Ao abrir das portas; disparamos. Houvesse um auditor do Guiness creio que ainda ostentaríamos o recorde de maior número de vezes apertando a tecla G1 no intervalo de 1 minuto.

Ao abrir das portas; disparamos. Curva fechada para a direita saindo do elevador. Corredor micro e estreito. Pequena reta ainda plana. Curva longa, em U, para a esquerda, com inclinação descendente acentuada. A garagem era escura, mas a pintura não era das piores. Uma faixa grande preta alcançava um metro. Era interrompida por uma faixa amarela de uns 30 centímetros precedendo nova faixa preta - essa mais estreita - antes do branco invadir o restante das paredes. No meio da curva em U havia uma portinhola que mais parecia levar a uma masmorra. Era ali que estava o nosso presente e o futuro de minha mãe.

O cadeado que envolvia as correntes que envolviam a porta estava aberto. Fosse uma masmorra de verdade acho que não estaria. Meu irmão logo se pôs para dentro, empurrando as barras de ferro, e o dedo ligeiro já sabia onde buscar o interruptor - na altura do peito logo ao lado esquerdo de quem entra. As luzes frias, sempre preguiçosas, piscaram três vezes antes de fixarem luz sobre aquele bicicletário de cinema trash da Band. Era inacreditável. Havia, pelo menos, uma centena delas. De todas as cores. Novas; velhas. As com pneus murchos e as prontas para andar. Algumas que foram de um e agora eram de outra. Um mar de duas rodas.

Lembro bem.

A sala era dividida em 2 níveis. Um anel superior abrigava umas quantas e descendo por uma escada, logo em frente à porta, era possível chegar a outras tantas. Tomamos ar e mergulhamos. Logo chegamos à nossa; quer dizer, dela, a de minha mãe. Posta aos ombros de meu pai saímos de lá com peito estufado e andar de caçadores que retornam à aldeia para mais exibir o troféu abatido do que saciar as bocas famintas.

Envolvemos o cadeado nas correntes que envolviam a porta - sem fechar - e dessa vez tomamos o percurso em direção exatamente oposta. No elevador marcamos o número 8.

Ao abrir das portas; todo o cuidado. Mai Brodi e eu empurramos a bicicleta para fora do elevador enquanto meu pai segurava a porta de maneira que não houvesse qualquer hipótese de danificarmos aquela estrutura de metal apoiada sobre aros. Chegava a ser engraçado o cuidado com um objeto que, basicamente, tem por conceito cair inúmeras vezes até que o condutor dome a liberdade do equilíbrio. O 'tilintintar' dos raios novos soava suave pelo corredor, em direção à porta de 802.

Já dentro de casa posicionamos o presente no centro da sala. Entre o sofá branco e o armário-relíquia-de-madeira-que-estala de meu pai.

Só restava agora todo o resto.

Partimos em disparada para o quarto principal. Agora a ansiedade já não poderia ser contida. Afoito como sempre disparei primeiro. Meu irmão veio logo em seguida, sempre se certificando que eu ganhasse, de alguma forma, mais atenção. Papa nos seguiu. No primeiro passo dentro do quarto; impulso. O pulo me jogou para cama e o instinto tratou de me fazer ser recebido com um abraço apesar do susto. Logo a cama estava tomada pelos quatro habitantes daquele pequeno apartamento. 'Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim'; parabéns dado. Presente à espera; na sala.

Pedimos surpresa. Para que fechasse os olhos. Aceitou, claro. Deixamos a cama e mamãe, que deixara a vaidade de lado há tempos sem jamais perder a imensa beleza, veio cambaleando em sua camisola de seda rosa. Mal sabia o quanto precisaria de equilíbrio. Ao abrir dos olhos perdeu-o pela primeira vez:

- O que é isso?! Vocês tão loucos? Que idéia... ficar gastando dinheiro com essas coisas. Que idéia. Por favor, né? Que coisa absurda. Onde já se viu. Deve ter sido caríssimo. Que idéia... vamos já devolver isso. Vocês trocam por uma coisa para vocês. Eu hein?! Que idéia....

...e o monólogo persistiu até que todas as curvas ascendentes que marcavam nossos rostos voltassem à linha reta. Contudo, as de meu pai permaneceram inalteradas. Ele sabia, melhor que nós - filhos -, que fazer minha mãe se permitir alguma coisa seria trabalho para Hércules tremer.

Sempre fora assim. Tudo para nós. Nada para ela. Minha mãe sempre teve pavor de ser feliz. Não que não fosse, mas era inconcebível permissões para ela. Difícil de explicar.

Aquela bicicleta toda rosinha, com laço de fita e detalhes em branco, com rodinhas auxiliares e decalque 'Ceci' bem no meio do quadro era, pra ela, a imagem da rejeição. Até porque trazia, na cestinha branca presa ao guidão da frente, o desafio do equilíbrio. Aos 40 minha mãe ainda vacilava nessa tarefa.

Foi preciso tempo. Hoje já não lembro se chegamos a ir a loja para uma eventual devolução ou troca. Acho que sim. Sei que foi ele também, tempo, que fez com que a desafiadora Ceci fosse colocada ao lado de nossas bicicletas. A princípio apenas encostada, mas não aceita.

Foi preciso tempo e um dia de sol.

Na Lagoa, no estacionamento em frente ao clássico Caiçaras, fomos os 4 e as 4 rodinhas.

Risos frouxos, outros contidos. Brilho nos olhos. Medo. Prazer. Promessas de nunca mais. Guidão frouxo sem apontar para frente. Mãos no freio. Tombos. 'Ai gente!'. Não consigos. Oito olhos atentos. Um par de tênis branquinho. 2 rodas. 2 joelhos feridos. 613 batimentos por segundo. Orgulho. A mão companheira dando equilíbrio ao banco-selim. Pés ao pedal. Equilíbrio. Minha mãe. A Ceci.

Comentários

Madre disse…
Assim é demais para mim. Haja emoção! Haja coração! E é incrível a escolha dos meus 40. Da Ceci. Do momento em que, finalmente, aprendi a andar de bicicleta. Indescritível arrepio de emoção invadiu meu corpo, de dentro para fora. Forte emoção, comparável aos 2 mais belos e intensos momentos de vida: quando fui mãe. Obrigada, Meu Lilinho, por resgatar esse sentimento em mim, em momento-família tão especial!

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