Prepara



09/09/09 - Dia mais perfeito para falar de futebol não há.


Ao meu velho malandro.


Prepara

I


“Prepara!” – a ordem do guri soou como um verdadeiro desafio. Pelos olhos do pai mal podia-se notar os traços infantis daquele menino que aguardava, ansioso, sua resposta.

Corpo projetado, sustentado em um equilíbrio duvidável, mas que a oportunidade do lance fez surgir apoio. Olhos fixos. Vidrados. Por trás da paleta preta não se notaria outra coisa – apesar do cabelo tom de praia e fios longos.

O ritual se repetia todos os finais de semana. A terceira prateleira do armário, de quatro divisórias, abrigava o antigo e surrado pote de Nescau, de tampa vermelha e ‘corpo’ transparente, mas não translúcido. Servia de concentração permanente àqueles botões – herança da infância do pai e fruto de furtos do, nada, angelical caçula.

A mesa de tábua era a primeira a entrar em campo, quer dizer, em sala. O palco era armado sobre a redonda mesa de vidro, que, nas horas vagas, recebia as refeições da família. Naquele dia, em especial, a fome era de botão.

Com o campo pronto era a vez dos craques. A profusão de cores, larguras, alturas e materiais chamava atenção. O mais incrível é que dentre as infinitas opções, havia suplentes suficientes para montar um exército e invadir a Argentina. Pai e filho montavam suas seleções em um piscar de olhos – repetindo sempre a mesma escalação, sem dar chance a novatos.

Diferente do mercenário mercado da bola naquele mundo não havia espaço para casacas viradas. Os craques de um, por mais que despertassem o misto ira-e-desejo, jamais brilhariam do outro lado do campo; quer dizer, da mesa. À semelhança dos gramados, a luminária, destacava os atacantes dos dois times – que resolviam nove entre dez jogos – e seus feitos não eram ignorados.

Os scouts de cada partida – disputadas em dois períodos de dez minutos, cronometrados, à risca, pelo relógio preto de pulso do pai – faziam parte do enredo. A cada gol, a cada resultado final, os dados eram, cuidadosamente, anotados pelo menino. O cartel do guri era de impressionar: 193 derrotas em número igual de jogos. Uma incrível sequência de 12 anos de derrotas. Persistência de impressionar.

O pai, velho malandro, não aliviava. Permitia algumas poucas regalias é verdade – a imponência do botão-zagueiro de dimensões rei momo, no time do filho, era destoante – mas não haveria espaço para falsas conquistas e o muleque sabia bem disso.

Na noite anterior tomara uma das sapatadas mais intensas da sua vida. Nunca sentira o tom de sola de borracha nas bandas da bunda, mas tinha certeza de que aquela, no campo, doía muito mais. Com o passar dos anos, a vitória, ou pelo menos o já magistral empate se aproximava. O garoto flertava com o deleite da conquista e não suportou o vexame imposto: 9 x 0, com direito a cinco gols de Bonamigo – um botão que deu notoriedade a uma tampa de relógio que filho e pai jamais ‘impulsaram’.

No caminho apressado para a cama “- To com sono, vou dormir”, as lágrimas lhe contrariaram logo após passar a porta do primeiro, dos dois banheiros que o apartamento abrigava.

A mãe, carinhosa como sempre, lhe escutara e ele pode ouvir o apelo feito ao pai momentos antes de ganhar um beijo de boa noite “- Pô, Mauricio, alivia, né? O guri só tem 12 anos; agora tá lá no quarto chorando. Eu, hein, pra que isso?”.


II

Indicadores e polegares grudados à paleta. Os outros seis dedos davam base ao chute iminente. À resposta do pai – “To pronto” – fez pressão sobre o botão que deslizou para impulsionar a bola-quadrado.

Chute certeiro. No ângulo. Golaço.

3x2 – de virada.

Nunca mais jogaram depois daquele dia.



Aprendi, naquele instante, a vencer e a ser pai – que um dia hei de ser.

Comentários

Unknown disse…
Belo "flerte" entre pai e filho! Mais do que derrota e vitória, o filho aprendeu - lindamente - com o pai a "persistência" em busca da "conquista". A ser "craque" no jogo da vida. A "vencer". E, especialmente, aprendeu como se constrói a relação entre pai e filho. Exemplo a ser passado de filho-pai para filho-neto. Essa é a grande vitória! Golaço de pai e filho! Comemora a mãe com beijo de cumplicidade.

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